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Texto de Fernando Fuão escrito para a exposição de ilustrações realizada

em 2015 na Galeria Nello Nuno na FAOP - Ouro Preto - MG

 

Desenhando com a tesoura

 

Sim, sim é possível desenhar com a tesoura, tza, tza, assim, ela vai fazendo esse ruído ao recortar, separar o papel, tza, tza. E, quando uma dezena de pessoas está recortando seus papeis o ruído é semelhante ao som da chuva.

A ilustradora Sônia Magalhães faz suas collages como se estivesse desenhando no papel. Seus trabalhos fantasticamente se movem, em sua maioria, dentro da riqueza do universo infantil. Cada vez que vejo uma de suas ilustrações collages é como se disparasse um gatilho de rememorações de minha infância. Um despertador mágico: recortar pessoas, animais, casas, com cartolinas coloridas, acrescentando, ora aqui ora ali, umas figuras ou fotografias de tecidos, panos ou texturas.

Assim são as collages de Sônia Magalhães: a festa da liberdade do desenhar. Do desenhar em profundidade, do desenho incisivo, de incisão mesmo. Na medida em que desenha recortando — chamarei esse ato de ‘descortar’ — Sônia desenha o que ela quer e sempre deixa outra figura de fundo, esvaziada, que contém a mesma imagem, só que sem nada daquela que recortou.

Esse processo do ‘descortando’ ou ‘inimagem’ (imagem contida dentro) está didaticamente explicada em suas ilustrações, como por exemplo, no livro: Dois gatos fazendo hora, do escritor Guilherme Mansur.  Graças às hábeis mãos da Sônia, o gato preto também é gato branco, num jogo de troca-troca de fundos preto, branco e cores, tudo se revela, ganha vida, animação e ternura. Assim vão surgindo telhados de casas, almofadas, gente, cadeiras, e até igrejas, na simplicidade e objetividade da passagem da tesoura.

Na verdade, as collages da Sônia são puro afeto para quem as vê, são puro sonhar e imaginar. Elas seguem uma longa trajetória amorosa da arte popular de recortar papeis — que talvez se inicie mesmo com a invenção das tesouras — toma categoria de arte com Matisse e posteriormente com os grandes ilustradores de aberturas de filmes para o cinema e a televisão.

É, talvez, essa coisa mais invisível, não aparente aos olhos, que a Sônia Magalhães trabalha tão bem e que caracteriza o filme: a passagem do tempo, o ritmo, a batida, a sequência, seus frames fixados ali em cada página, que tão gentilmente ela nos permite ver de suas imagens em movimento, do filme que ela vê, que a faz imaginar através das palavras do autor. São esses mesmos fotogramas ou sketches que ela nos apresenta, nos presenteia para que uma vez mais tudo se torne vivo, motion, em e-motion.

Tza, tza, lá vai a tesoura fazendo hora, fazendo tempo, construindo o tempo, passando o tempo. O que uma tesoura ou mesmo um lápis fazem é matar tempo, nos fazem esquecer o tempo. Uma vez imersos em seus mundos, nos esquecemos de tudo, como se o mundo se suspendesse lá fora enquanto estivermos com eles, uma espécie de escurecimento ao redor para ficar iluminando a atividade do fazer lá dentro, do recortar, desenhar, colar, o ‘descortando’, o descortinando, o entretecido das horas.

A questão do tecido, do tecido mesmo, da fazenda, da roupa, é tão presente no trabalho da Sônia, que se entretece com o tecido da escrita, da linguagem. Quanta riqueza surge quando começamos a relacionar todos esses elementos interligados, costurados, cerzidos por pura afetividade: livro, collage, papel, tecidos, pedaços de tecidos, olhos, pele.  Enfim, Sônia nos toca.

 

Fernando Fuão

é doutor pela Universitat Politécnica de Catalunya, Barcelona/ professor na Faculdade de Arquitetura da UFRGS/ autor entre outros do livro "A collage como trajetória amorosa" - editora UFRGS/ autor do mundocollage.blogspot.com.br.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                     

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